Oi,
pessoal. Como vocês estão?
Neste
mês de julho, escolhemos trazer para as nossas conversas aqui
dentro da Énois um tema mobilizador de paixões, multidões e
erros no jornalismo: a cobertura das ações da polícia. No
momento em que escolhemos pesquisar metodologias e ferramentas
sobre isso, ainda nem borbulhava nas nossas cabeças a chacina
do Jacazerinho, o assassinato de Kathlen Romeu ou os tiros
disparados pela Polícia Militar de Pernambuco durante o #29M,
que resultaram na perda de visão de duas pessoas.
Naquele
momento, a pauta surgia de um movimento provocado
pós-assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, a revisão
sistemática da cobertura das ações policiais pelos veículos
estadunindenses, uma espécie de movimento de autocrítica e
reparação de anos de uma cobertura que privilegiava uns
discursos e invisibilizava outros. O “Caso Floyd”, como
gostamos de chamar todos os crimes que ganham visibilidade -
ou os quais nós, jornalistas, damos visibilidade - foi base
para parte da imprensa de lá repensar como, a partir da
cobertura policial, estava fortalecendo o racismo, a
criminalização dos corpos e o punitivismo estatal.
Por
aqui, o que nos levaria - em definitivo - ao mesmo caminho? Do
dia em que decidimos pautar o tema na nossa Caixa
de Ferramentas,
em uma edição
anterior da Diversa e
também no último
Redação Aberta,
até hoje, fomos atropeladas por mais um caso. Desta vez, o
“Caso Lázaro”. Em meio a tantas tragédias, o jornalismo
encontrou espaço - e quanto espaço - para narrar um país
mobilizado por uma prisão.
A
construção de mais um “caso”
Uma
das primeiras coisas que aprendemos nas graduações de
jornalismo são os critérios de noticiabilidade. Escolher o
que vamos contar, como vamos contar e por que o faremos parece
uma decisão lógica e objetiva. Mas como já contamos aqui
também na Diversa,
a objetividade é um mito que se constrói quando decidimos,
também, simplificar a complexa realidade. Na cobertura
policial, a busca do furo e da manchete por vezes contempla a
procura do extraordinário que justifique a pauta.
Isso
tem como premissa, muitas vezes, um lugar comum e simplista:
diante de tantos crimes, precisamos escolher quais iremos
contar. Banalizamos a análise sobre a violência e
brutalizamos as pessoas. Ao mesmo tempo em que caçamos um
fato espetacular, seja o crime com mais mortes ou a morte mais
perversa, achamos a “anormalidade” do ser que o comete.
Adjetivamos, para dar ênfase à disrupção daquele “caso”.
Encaixamos um enredo para segurar a pauta por dias, como se
estivéssemos diante de uma ficção.
“Serial
Killer”, ''satanista”, “'maníaco”, “psicopata” foram
alguns dos adjetivos dados pelo jornalismo - ou adotados
gratuitamente pelo jornalista a partir do discurso oficial da
polícia - a Lázaro Barbosa ao longo dos 20 dias em que
esteve em fuga pelo Distrito Federal. Criamos uma novela, como
explicou o professor Rogério Christofoletti em
um dos textos que questionam a cobertura brasileira da busca
por Lázaro,
escrito e publicado pela Ponte Jornalismo.
Cada
adjetivo desse carrega consigo sua própria carga de
preconceitos, que a lente da espetacularização, ou mesmo da
compreensão da cobertura policial como uma cobertura sobre
crimes e não indivíduos e suas relações, não nos deixa
enxergar. Recorremos ao “pânico
satânico”,
que descreve um ritual racista e ignorante de intolerância
religiosa, como pontuado em outro
texto-chave para
refletir sobre o papel da imprensa nessa cobertura, escrito
por Fabiana Moraes, para o The Intercept Brasil. O “Caso
Evandro”,
que virou série documental para a Globoplay recentemente, é
um dos maiores exemplos disso.
Patologizamos
o crime sem um diagnóstico prévio. Olhamos pelo viés
editorial
comercial,
para
perceber tardiamente que impulsionamos uma
narrativa onde há mais erros que acertos.
Assim, o jornalismo deixa de pautar criticamente a sociedade
para participar da construção social do crime, que ao fim
justifica sequências de violações de direitos.
Um
caminho possível
Apesar
dos pesares, como mostrou a newsletter
Farol,
o caso Lázaro abriu um precedente. Em meio à cobertura,
diante da pressão dos movimentos sociais e dos desgastes nas
redes, veículos como o G1
e UOL se
posicionaram com pedidos de desculpas pela reprodução
acrítica do discurso policial, com conteúdos de incitação
de ódio e intolerância religiosa (além deles, outros
veículos se referiram a Lázaro como “maníaco de Brasília”
e publicaram títulos falando sobre “rituais malignos,
assassinatos e psicopatia”, entre outros adjetivos).
O
G1 havia publicado um título no qual fazia referência a
rituais e bruxaria. Pediu desculpas em uma nota de redação,
na qual diz ainda que “Após esse alerta, o
G1 apagou os posts em
suas redes sociais, tirou os destaques no portal e atualizou
esta reportagem para modificar o título e o texto. Também
ouviu lideranças religiosas sobre as afirmações do delegado
e sobre as imagens divulgadas pela polícia”. O UOL havia
mencionado, reproduzindo a fala da polícia, a expressão
“força satânica”.
De
imediato, ao lembrar das pesquisas que fiz em relação à
mudança na cobertura estadunidense após o “caso George
Floyd”, fiquei me perguntando: será que nós, jornalistas
brasileiros, podemos abraçar esta como a nossa oportunidade
de rever, enfim, a cobertura policial?
Para
nos ajudar, juntei aqui alguns aprendizados, extraídos das
leituras dos textos mencionados acima, sobre como refletir
criticamente sobre a nossa cobertura enquanto acompanhamos uma
ação policial:
Preste
atenção no que dizem as fontes. Às vezes, na correria
do dia a dia e da cobertura, reproduzimos na íntegra algumas
aspas de familiares de vítimas, conhecidos, testemunhas e
agentes da polícia que reproduzem estereótipos, preconceitos
de raça, classe, gênero e etnia. Pense duas vezes na
necessidade de visibilizar aquela forma de contar um ocorrido
e sempre avalie que, para publicar o conteúdo, caso seja
necessário, será preciso dar contexto.
Pautar
os discursos. Ao reproduzir conteúdos preconceituosos ou
deturpados da cobertura de uma operação policial, a sua
reportagem pode estar contribuindo para amplificar discursos
de ódio que legitimam políticas de exclusão e segregação
social. Pense sempre em quem pode se aproveitar, direta ou
indiretamente, da sua abordagem e se isso irá vulnerabilizar
ainda mais alguns segmentos sociais.
Cuidado
com manchetes declaratórias. Manchetes como “Fotos
mostram que casa de Lázaro Barbosa, suspeito de Chacina na
Ceilândia, tem itens que indicam bruxaria e rituais, diz
polícia”, reproduzem indiretamente intolerância religiosa
embutida na declaração de um órgão oficial. Isso pode
credibilizar essa abordagem.
O
que é normal? Classificar pessoas como “monstruosas,
dissidentes, folclóricas, esquisitas, incivilizadas,
exóticas”, como falou Fabiana Moraes no texto do The
Intercept Brasil, mede os indivíduos por uma régua de
“normalidade” definida pelo jornalista. Por meio desse
mecanismo, o jornalismo ajuda a classificar condutas
desviantes na sociedade e a incitar o ódio contra o indivíduo
que comete um delito.
A
criação de um crime. Ao escolher que histórias
contar e como contá-las, o jornalismo pode estar definindo
que crimes irão existir perante a sociedade e quais não.
Visibilizar um caso é dar respaldo para o julgamento social
sobre ele, já que as condutas delitivas também são gestadas
pela reação a elas. No caso Lázaro, por exemplo, o “serial
killer” só existiu porque foi introjetado na mente da
audiência.
Realidade
não é ficção. Quando as operações policiais demoram
mais de um dia e há necessidade de suítes, precisamos
escolher o que iremos contar. Não há necessidade de pautar
qualquer assunto sobre o tema, apenas para ter uma matéria,
nem de ficar procurando personagens envolvidos na operação,
como se ela fosse uma trama. Até que ponto vale destacar a
vida, história de vida ou característica física de um
policial envolvido nas buscas, por exemplo? Questionamentos
como esse devem ser naturalizados nas reuniões de pauta, para
construir um diálogo entre editores e repórteres na
cobertura.
Bom,
esses foram alguns aprendizados que tirei das leituras de
alguns textos sobre a cobertura do caso Lázaro. Espero
continuar esse assunto com vocês no meu e-mail,
alice@enoisconteudo.com.br.
Até
mais!
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